O acesso à justiça e a metamorfose do Direito pós-pandemia



“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos”.

Tal passagem recolhida da obra “A Metamorfose”, de Franz Kafka, permite observar que, para o referido autor, não há metáfora, mas sim, metamorfoses, em um movimento consistente em dar “uma chance a uma verdade possível arriscando a experiência última da transformação das coisas segundo a designação do sentido próprio (…)” (OST, François. Contar a Lei. As fontes do imaginário jurídico. Trad. Paulo Neves: São Leopoldo: Editora Unisinos, p. 431).

A partir das imbricações entre o Direito e a Literatura, é possível verificar a “metamorfose” ou a transformação do Direito pós-pandemia. O raciocínio cartesiano contribuiu para uma interpretação dissociada da realidade fenomênica e da tragédia humana resgatada pela crítica Kafkaniana.

A tutela coletiva a envolver direitos humanos, em especial das pessoas vulneráveis (idosos, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, etc.) requer uma sensibilidade por parte dos aplicadores do Direito. Isso porque a jurisdição é fundamental para a democracia e a responsabilidade implica em um compromisso com a efetividade qualitativa – e não meramente quantitativa, ou seja, com o volume de processos.

A ideia de responsabilidade judicial pela concretização dos direitos humanos e fundamentais leva ao exame das consequências do processo decisório. Daí a importância de um amplo debate com a comunidade atingida pela decisão, sobretudo nos processos coletivos, com a realização de audiências públicas, dialogando com as pessoas de “carne e osso”.

Assim, o direito humano de acesso à Justiça tem como fundamento ético o dever de responsabilidade para com as pessoas (alteridade e empatia). A metamorfose do Direito pós-pandemia decorrente da sociedade da aceleração não pode descurar do seu enraizamento ontológico. Em suma: As pessoas vêm em primeiro lugar na missão de tornar efetivo o Direito, pedaço de vida humana que não é feito de régua e compasso, mas de experiência e sensibilidade.



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